Escolhida


Primeiro foi a calcinha no varal improvisado do banheiro. Eu não me lembrava de tê-la colocado lá, nem ao menos me lembrava de tê-la lavado. Eu acordei atrasada, tomei um banho correndo e larguei a calcinha num canto qualquer do box, era disso que eu me lembrava. Depois foram os copos: perfeitamente limpos e guardados no armário, mas, até onde eu sabia, um copo estava sujo de vinho e no outro eu só tinha tomado água, mas ele estava na pia esperando para ser lavado também.

Ok, antes que você me chame de louca, preciso dizer que eu moro sozinha há um ano, e, embora eu às vezes deixe copos e calcinhas para trás, por pressa ou preguiça, costumo manter as coisas em seus devidos lugares, afinal, bagunça acumula fácil e as coisas não se arrumam sozinhas. Ou não se arrumavam... E só pra constar (já que citei o copo de vinho): eu não bebo a ponto de perder minha lucidez. Não sozinha, pelo menos e, definitivamente, não em casa. Não teria a menor graça.

Mas, sigamos...

A primeira coisa que eu pensei foi naquelas pessoas que moram escondidas nas casas das outras. Eu sei, é muito absurdo, muito improvável, e a pessoa teria que ser bem burra pra se delatar arrumando coisas pela casa, mas eu procurei. E nada. Daí, assumi que estava tendo problemas de memória. O que mais poderia ser, afinal? A gente às vezes faz as coisas de forma tão automática que nem se dá conta, né? Só que aí, veio o caso do bolo.

Foi assim: eu havia prometido um bolo para uma amiga e falei em voz alta "bora fazer esse bolo de maçã logo!" - é, pessoas que moram sozinhas, muitas vezes falam sozinhas. Eu tinha comprado todos os ingredientes para fazer o bendito bolo, menos as maçãs! Tá, é agora que você ri da minha cara. Vai lá, pode rir. Sem dó! Eu só percebi a falta das maçãs quando estava separando os ingredientes. Deixei açúcar, farinha, ovos e canela em seus devidos lugares e saí em busca das maçãs. Ao voltar, o fermento e o óleo também estavam lá separadinhos e a forma estava untada!

Surtei? Sim. Gritei? Muito! Vasculhei a casa de novo? Claro! Encontrei algo? Não. Fiz o bolo? Não. (Mas aposto que essa última resposta você já sabia).

O importante é que depois disso eu tive uma ideia: câmeras! Comprei uma daquelas lâmpadas com câmeras que você pode acessar pelo celular. Coloquei a lâmpada no quarto porque minha cozinha tem um formato estranho em L e eu não teria uma visão boa de todo o espaço. Tirei "A Faca Sutil" da estante, deixei um brinco caído no chão, longe do par que estava na cômoda e, para completar, deixei uma toalha molhada em cima da cama, perigosamente perto do livro. Saí decidida a monitorar o quarto, diretamente do meu banco na padaria da esquina, enquanto tomava quantos cafés me fossem necessários, mas nem precisei esperar muito, na metade do segundo café, alguém entrou no quarto. Ajustei a câmera. Esfreguei os olhos. Olhei mais uma vez para ter certeza. Paguei a conta e corri para casa.

Abri a porta com tudo e ouvi uma expressão de susto seguida por passos indecisos enquanto eu corria para o quarto gritando "não adianta mais se esconder!" Parei na porta do quarto e olhei em volta: nada fora do lugar. Eu ouvia uma respiração acelerada, assustada. Uma outra, além da minha. Blefei: "pode sair daí" - como se eu soubesse exatamente onde ela estava, e funcionou. Ela saiu.

No momento seguinte eu tinha uma elfa de cabeça baixa à minha frente.

Conversamos. Ela havia sido libertada ao ganhar uma camiseta do Nando Reis e decidiu cair no mundo e curtir a vida, mas descobriu que o mundo não é tão 'bão' assim e que as pessoas não aceitam muito bem os seres diferentes, humanos ou não... Ela entrou e se escondeu no armário de panelas enquanto eu atendia o carteiro, e, desde então, foi fazendo o que sabia fazer de melhor, arrumar, limpar, ajudar... Veja bem: uma pessoa não caberia no meu armário de panelas e eu nem cogitei outras possibilidades. Parece que em algum momento eu me esqueci que a vida pode, às vezes, ser fantástica, sim.

Agora ela tem seu espaço, seu quarto. Dei a ela outras roupas, várias, para que possa se trocar quando quiser. Assim como eu, ela adora ler e troca de roupa o tempo todo, muitas vezes pega as minhas roupas, mas eu não ligo, fui escolhida por uma elfa e agora tenho companhia e refeições fresquinhas, não tinha me tocado do quanto essas coisas me faziam falta.



Nota: "Escolhida" foi publicado em formato de thread no twitter em 2020.


Casa Velha


Ela corria, desesperada. O dia começava enevoado, e ela sentia que estava chegando perto, mas de onde ou de quê, não sabia. Sentia muito frio e já não tinha a menor noção de onde estava, parecia que corria há dias. Viu ao longe uma luz e soube que aquela seria sua última chance. Depois, apenas escuridão.

Com a proximidade, conseguiu ver melhor, a luz vinha da janela aberta no segundo andar de uma casa. Olhou para trás uma última vez. Não conseguia ver seu perseguidor, era como se ele fosse feito de pura escuridão. Sentia que tinha conseguido uma vantagem razoável, e a casa estava cada vez mais perto. Então sorriu, deixando-se contagiar pela esperança de um alívio vindouro. Em seguida, viu-se dentro da casa, mas, ao invés da segurança esperada, se deparou com sua própria ruína.

“Este é o seu fim”, ela ouviu, e sentiu um arrepio.


❃ ❃ ❃

Verônica acordou com a camisola encharcada e o coração aos pulos, a frase ameaçadora retumbando em seus ouvidos. Sentou-se na cama ainda impressionada com o pesadelo e deu de cara com o quadro da avó, que parecia vigiar todos os seus movimentos com um olhar severo.

— Devia ter tirado isso da parede. A senhora só me assusta, dona Odete!

Na casa, além de Verônica, havia somente caixas empilhadas e móveis antigos, cobertos com lençóis brancos. A avó havia falecido meses antes e deixado para a neta a casa medonha, onde havia vivido sozinha seus últimos 27 anos, isolada no interior de Minas Gerais. A garota estava ali pela mera obrigação de desocupar o lugar pois, milagrosamente, tinha encontrado alguém interessado em comprar aquela “casa-velha-no-meio-do-nada”. O lugar lhe dava arrepios. Não importava quantas luzes estivessem acesas, tudo parecia sempre escuro. Desde pequena, odiava aquela casa, sentia que ia morrer sufocada, pois, aparentemente, nem o vento gostava de entrar ali. O ar era estagnado e morno. Toda vez que seus pais cismavam em passar uns dias na casa da avó, Verônica se esforçava para não dormir, pois sabia que teria pesadelos. É claro que seus esforços eram inúteis, e ela acordava aos gritos no meio da madrugada. Invariavelmente, a avó estava ali olhando para ela, como olhava agora, do quadro. Ela levava a neta para a cozinha, oferecia um chá e ficavam conversando, enquanto limpava os vidros. Ela sempre limpava os vidros! Depois ficava reclamando da dor nos pulsos. Sempre. Durante o dia, quando saía para brincar no quintal, tinha a sensação de estar sendo observada e seguida o tempo todo. Verônica achava que agora, adulta, não teria mais medo, mas, naquele momento, sozinha na casa, todas essas sensações eram ainda mais intensas.

E aquele pesadelo? Parecia ainda mais real que o da noite anterior! Ela pouco se lembrava da conversa à mesa de reunião da empresa, mas sabia que tinha tomado uma decisão importante e não podia voltar atrás, por mais que lhe suplicassem. O que se lembrava nitidamente era da voz suplicante e angustiada dizendo “Você não pode nos deixar!”. A voz, nos dois sonhos, era a mesma, mas o tom de desespero havia sido substituído por um tom da mais pura raiva, e a mensagem, agora ameaçadora, não deixava muito espaço para interpretações: “Este é seu fim!”.

— Credo! — Falou bem alto enquanto fazia o sinal da cruz. Não era religiosa, mas qualquer conforto era bem-vindo.

Por sorte, era seu último dia ali. Sua avó bem que podia ter deixado para ela a casa na praia, ou o apartamento de Nova Iorque. Ela poderia estar agora em São Paulo, fazendo as malas para sair do país — e, com alguma sorte, não voltar mais —, mas estava presa naquela cidadezinha sem graça, desencovando coisas inúteis, porque a avó havia vendido todo o resto de seus bens antes de morrer. Era ridículo que, tendo tanto dinheiro, a senhorinha preferisse passar tantos anos naquele lugar ermo, em vez de viajar pelo mundo. Aquela família nunca soube mesmo aproveitar a vida! Pelo menos tinha conseguido um velho maluco que ofereceu um bom preço para ficar com a casa e boa parte das tralhas que havia nela, pena ele não ter ficado logo com tudo, ela realmente não se importaria.

Lutando para esquecer o sonho e ignorar a sensação de que tinha olhos sobre si a cada passo, Verônica se trocou e passou as duas horas seguintes terminando de encaixotar as coisas da avó, nem se importou em tomar café, comeria alguma coisa na viagem de volta, o que precisava agora era terminar de separar logo todas aquelas quinquilharias. A maior parte das tralhas — roupas, calçados, utensílios, bibelôs e os poucos eletrodomésticos — seria doada para a igreja da cidade, os móveis ficariam com o novo dono da casa. O idiota havia oferecido 10 mil a mais pelos móveis, mal sabia ele que os teria de graça se tivesse pedido. Não devia ter nada que prestasse naquela casa. Ela tinha certeza de que não ficaria com nada da avó, mas, ao esvaziar a cômoda, o último móvel que faltava, encontrou um belo colar prateado com um pingente vermelho. Enfim alguma coisa interessante que poderia levar para si, com certeza ficaria bom na composição de um visual mais gótico. Colocou-o no pescoço e olhou-se no espelho. Era perfeito! Era impressão sua, ou seus olhos estavam mais brilhantes?

Momentos depois, chegaram as beatas da cidade para retirar as doações. Ela ajudou a carregar a van e se esquivou da ladainha do “sentimos muito a morte da sua avó”, “você tem um bom coração” e “sua doação vai ajudar muito a nossa paróquia”. Estava fazendo aquilo só para se livrar das coisas, e ser elogiada por isso trazia uma pontada de culpa que ela não queria sentir. Além disso, sabia que a avó não tinha muitos amigos, e aquelas senhoras, provavelmente, nem a conheciam.

Fechou a casa e saiu logo após a van. Com um pouco de sorte, estaria em sua própria cama antes da meia-noite. Durante os 666 quilômetros de viagem — numerozinho que, pensando bem, combinava perfeitamente com a situação — precisou olhar várias vezes para o banco de trás para ter certeza de que estava sozinha no carro. Quando finalmente chegou a seu apartamento, teve a impressão de que alguém a observava da porta do quarto. Até quando isso duraria? Talvez ela não devesse ter ido para Minas sozinha, tinha se impressionado demais com a casa, mas, com certeza, aquilo passaria logo. Para se distrair, começou a fazer planos para o dinheiro que ganharia com a venda da “casa-velha-no-meio-do-nada”. Como seus pais haviam falecido num acidente, três anos antes, os bens da avó iriam todos diretamente para ela, e, somando o valor da poupança que dona Odete tinha, conseguiria pelo menos uns três mil reais de rendimento mensal. Talvez fosse uma boa hora para vender também a empresa. Ela não gostava mesmo de publicidade, e não tinha a criatividade nem o pulso firme do pai para controlar os negócios. Com dinheiro sobrando, e sem ninguém para cobrar satisfações, poderia viver bem, como a avó e os pais nunca souberam. Conheceria o mundo todo!

Depois de uma noite inquieta, repleta de sonhos estranhos, levantou-se para trabalhar. Já havia deixado a empresa por dois dias e, com certeza, teria muitas pendências para resolver. Era apenas quarta-feira, mas ela estava cansada como se tivesse trabalhado um mês inteiro sem folga, e se consolava dizendo que aquela vida estava prestes a acabar. Se tudo corresse bem, em breve não precisaria mais se preocupar com empresa nenhuma.


❃ ❃ ❃

Ela se assustou mais com o barulho da buzina do carro que vinha atrás, do que com o fato de quase ter atropelado um cara perto do Parque Augusta. O motorista estressado tinha conseguido frear a tempo de evitar a batida, mas fez questão de sair do carro e tirar satisfação:

— Isso é lugar de parar, garota?! Tinha que ser mulher, mesmo! — gritou depois de um tapa nervoso no teto do carro.

— Você queria que eu passasse por cima dele?

— Dele quem? Ficou louca? Sai logo do caminho, sua retardada!

O cara tinha sumido tão de repente quanto havia aparecido. Tinha atravessado bem na frente do carro, segundos antes. Onde poderia ter ido? Foi tudo tão rápido! Seus olhos haviam se encontrado por apenas uma fração de segundo, mas ela sabia que não tinha sido a primeira vez. De onde conhecia aquele rosto? O irritadinho do carro de trás voltou a buzinar, e ela desistiu de procurar ou tentar se lembrar de qualquer coisa, concentrou-se na direção e, duas quadras depois, entrava na garagem do prédio onde trabalhava. Somente ao olhar-se no espelho do elevador é que percebeu que ainda estava com o colar da avó. Havia tirado o colar para dormir? Para tomar banho? Não se lembrava.

Depois de chegar à sua sala, no décimo andar, se concentrou no trabalho e conseguiu esquecer da casa e dos pesadelos por alguns momentos, e o incidente daquela manhã ficou completamente esquecido até a hora do almoço, quando encontrou o mesmo rapaz no restaurante. Verônica o viu assim que entrou com Marina, sua amiga e diretora de criação. Ele trabalhava ali, era por isso que já o tinha visto antes, simples assim. Pensou em abordá-lo, mas o que diria? “Ei, tome mais cuidado quando for atravessar a rua”? Ou algo do tipo “Oi, eu sou a moça que quase te atropelou hoje, como vai”? Seria ridículo. No fim das contas, ela apenas riu e contou para Marina o que havia acontecido, apontando vagamente em direção à cozinha, onde o tinha visto entrar minutos antes.

Na quinta-feira de manhã, ele estava na padaria, na esquina em frente à sua casa. Ela virou o rosto, sem graça, quando percebeu que ele a havia surpreendido, encarando. Quando olhou de novo, logo depois, ele não estava mais, outra pessoa tomava café no lugar que antes era dele. Estranhou que esse homem estava com a camisa idêntica. Mais tarde, ela o viu no estacionamento do prédio da empresa, ficou curiosa, mas estava com pressa e não tentou falar com ele. Decidiu que tentaria contato no restaurante, mas desta vez não o encontrou. Perguntou por ele, mas os funcionários disseram que não o conheciam ou que não tinham visto ninguém com a descrição que ela dava. No fim, acabou deixando para lá, tinha mais o que fazer.

No fim da tarde, Verônica estava no elevador, descendo para a garagem do prédio. Por sorte, ela conseguiu conter o grito de surpresa quando o elevador parou no sétimo andar e ela viu o cara do restaurante no meio do grupo que esperava para entrar. Mas, quando o rapaz entrou no elevador, ela viu que era alguém totalmente diferente. Culpa do cansaço, só podia ser. Ela mal conseguia dar conta do serviço acumulado e os pesadelos continuavam atrapalhando seu sono. Precisava de férias.

Na sexta-feira, ela nem se surpreendeu ao vê-lo no carro azul, parado no farol, bem a seu lado. Vê-lo na loja de calçados que visitou na hora do almoço, foi mais estranho, mas, nas duas ocasiões, ele havia sumido de repente. Mais tarde, ele apareceu para entregar o lanche de um dos estagiários. Ela levantou rápido quando o viu através da parede de vidro de sua sala, mas, quando abriu a porta, já gritando um “ei, você”, viu que era apenas o entregador de sempre, um menino franzino que nada tinha a ver com o homem que ela procurava. Todos a olharam. Sem jeito, ela emendou: “Não, nada. Ia pedir um lanche também, mas mudei de ideia”.

Depois do expediente, o pessoal da agência convenceu Verônica a participar de uma happy hour. Após sua ascensão forçada, de diretora de atendimento a presidente da empresa, tinha saído poucas vezes, então cedeu aos apelos dos colegas. Ela também achava que precisava espairecer. Beber um pouco ajudaria a esquecer os últimos dias...

O homem alto, moreno, de cabelos pretos e ondulados, estava bebendo sozinho num canto do balcão. Verônica controlou o impulso de ir até ele, até já esperava que ele sumisse em seguida, como em tantas outras vezes, mas, quando olhou para o desconhecido pela terceira vez, ele ainda estava no mesmo lugar. Ela apertou os olhos para ter certeza de que não estava se confundindo novamente, mas não havia dúvidas desta vez. Agora ele também a encarava e sorria.

Aquilo já era demais! Ela havia perguntado mais uma vez no restaurante, e os funcionários juraram que ninguém diferente havia trabalhado ali nos últimos meses. Então ela voltara à questão inicial: de onde o conhecia? Tinha quase certeza de que o evento do “quase atropelamento” não tinha sido o primeiro contato. Resolveu ir até ele. Deixou a timidez de lado, respirou fundo, disse aos colegas que ia ao banheiro, e foi até o balcão onde ele se encontrava.

— É impressão minha, ou você está me seguindo? — disse sorrindo.

— Eu avisei: você não pode nos deixar! — ele respondeu.

Aquela era a voz que vinha ecoando em seus pesadelos na última semana. E foi como se, de repente, várias vozes falassem ao mesmo tempo dentro de sua cabeça. Ouviu repetidas vezes as frases que a vinham assombrado nos últimos dias: “Você não pode nos deixar. Não pode! Não pode nos deixar!, Este é o seu fim! Seu fim! ”, e sentindo o mundo girar ao seu redor, ela desmaiou.

Despertou nos braços de um colega do escritório por quem tinha “uma quedinha” não declarada, nem à melhor amiga. Era a primeira coisa positiva naquela semana maluca, mas ela conseguiu estragar tudo, pois assim que se lembrou do que havia acontecido, gritou:

— Cadê ele?!

— Ele quem? — Seus colegas se entreolhavam confusos. — Você disse que ia ao banheiro, parou perto do balcão e, de repente, caiu desmaiada.

Ela nem insistiu. Ele tinha sumido mais uma vez! Não queria parecer maluca, mas talvez estivesse ficando. Será que ele pelo menos tinha estado ali em algum momento? E em todas as outras vezes? E a certeza de que tinha alguém sempre observando seus movimentos em casa? E os sonhos que não haviam dado trégua? Havia criado um “inimigo imaginário”? Será que devia procurar um psicólogo? Um psiquiatra? Maldita “casa-velha-no-meio-do-nada”!

Depois de um tempo ela conseguiu convencer os amigos de que estava bem, mas recusou o convite para estender a noite numa balada. Todos sabiam que no sábado ela assinaria, enfim, a papelada de venda da casa, então ninguém insistiu. Verônica precisava ficar sozinha, precisava pensar, mas quando abriu a porta de seu apartamento, teve certeza de que tinha alguém lá dentro, certeza de que ele estava lá dentro. Parecia que ela jamais poderia ficar sozinha novamente. Ela olhou tudo, revistou cada canto de cada cômodo. E nada! Não havia sinal de ninguém, estava tudo no lugar, mas a sensação estranha permanecia. Era como se ele estivesse bem atrás dela a cada passo, ela quase podia sentir sua respiração.

Era quase meia-noite quando ela finalmente tomou um banho demorado e foi se deitar. Pela quarta noite consecutiva dormiria com as luzes acesas, assim ele não teria nenhuma sombra para se esconder. Demorou para pegar no sono, e sonhou que estava ali mesmo no apartamento, mas estava nua e encolhida no canto do banheiro. De alguma forma, ela sabia que estava sonhando, e que poderia controlar o sonho. Já havia lido alguma coisa sobre sonhos lúcidos, poderia fazer o que quisesse! Tomou coragem e se levantou, não tinha muita certeza do que fazer, mas disse a si mesma que ele não estava ali, que iria se deitar e acordar segura em sua cama. Ao sair do banheiro não viu sinal dele, então sentiu-se mais confiante. Foi até a cama e se deitou.

Acordou. Tinha funcionado, então? Sentia o corpo dolorido e cansado. Foi até a cozinha e pegou um copo d’água. Quando voltou para o quarto, ele estava na cama, tão nu quanto ela. Em que momento ela havia tirado as roupas?

— O que foi, meu amor, teve um pesadelo? — ele perguntou, com fingida inocência. Então, sua expressão se trancou, ameaçadora e ele acrescentou: — Volte para cama, volte para casa!

Ela entendeu que no sonho eles eram casados, a aliança brilhou no seu dedo e o copo caiu, espalhando água e cacos de vidro por todos os lados. Ela acordou com o barulho. Foi um sonho dentro de um sonho. Apalpou o corpo desesperadamente para se certificar de que estava vestindo a camisola, e de que desta vez tinha realmente acordado. Após um segundo de alívio, percebeu que ele estava na porta com uma expressão preocupada.

— Calma, filha, foi só um pesadelo. Ou não foi? — Ele riu. — Você não pode vender a casa! — completou.

Agora ele era seu pai, e os dois não estavam mais no apartamento, olhando em volta, ela reconheceu o papel de parede, o guarda-roupas cheio de adesivos e a prateleira onde livros e brinquedos dividiam espaço no seu quarto de infância. Levantou sentindo-se tonta e ele a amparou antes que caísse, fez com que ela se sentasse na beirada da cama e saiu dizendo que ia buscar uma água com açúcar. Assim que ficou sozinha, fechou os olhos e desejou estar em casa, sã e salva. Ao abri-los novamente estava no sofá do apartamento, tinha cochilado enquanto assistia a um filme. Desligou a TV e foi para o banheiro. Olhando no espelho, viu sua cara amassada e levemente pálida, mas também viu a cara dele com o mesmo sorriso estranho do bar. Ela gritou e virou o corpo dando socos no ar. Não havia ninguém ali, mas ela podia ouvir a voz dele:

— Com o colar você pode me ver, mas só quando eu quero e do jeito que eu quero!

No espelho, seus olhos assustados estavam quase tão brilhantes quanto a pedra vermelha do colar, que ela puxou, nervosa. Sentiu a mão queimar, mas o colar nem se moveu. Gritou com toda a força que podia, mas a voz não saía, atrás de si ouviu a voz da avó, intercalada com a de seu perseguidor, numa sucessão de explicações e ameaças:

— Não adianta gritar! Se não tivesse sido tão fútil e presunçosa a vida inteira, não estaria passando por isto.

— Você fica na casa, de um jeito ou de outro.

— Eu fiquei até o fim, minha neta, e aprendi minha lição, agora é a sua vez!

— Se você não fica na casa para nos proteger, você se torna uma de nós.

— É o que você merece, Verônica! Você nunca se importou com nada nem ninguém além de si mesma. Por que acha que eu deixei a casa para você?

— Volte para a casa, cancele tudo e volte agora!

— Sua garota mimada! Volte! É sua única chance.

— Alguém precisa cuidar da casa e de nós. Tudo está sujo e bagunçado. — disse o homem, fazendo uma voz tristonha.

— Volte! — as duas vozes gritaram em uníssono.

Acordou em posição fetal, tremia involuntariamente e não conseguia controlar as lágrimas. Não dava mais para ficar naquele apartamento. Colocando um sobretudo por cima da camisola empapada de suor, pegou as chaves do carro, e saiu sem olhar para trás. O porteiro, estranhando o horário, disse alguma coisa que ela não entendeu, não precisava nem olhar para saber que o porteiro era ele. Não sabia para onde ia, mas não se importava, só precisava se afastar.

Dirigiu o mais rápido que pode, mas ele estava sempre por perto de alguma forma. No carro de trás. No carro ao lado. Ela nem se deu conta de quando pegou a BR-050, mas não vendo outros carros por perto, achou que estava livre. No entanto, ele estava ali, agora no banco de trás. Ela chorou, gritou, estapeou o volante, mas continuou dirigindo, em sua mente débil, achava que ainda poderia se afastar. De alguma forma.


❃ ❃ ❃

Pane seca.

O carro travou numa estrada de terra.

Ela abandonou tudo e saiu correndo, precisava conseguir ajuda de qualquer forma. O homem, sorrindo, apenas acompanhou com os olhos a fuga desenfreada. A essa altura o dia já começava a amanhecer, enevoado. Ela não via nada em torno, mas tinha a sensação de que estava perto da sua salvação, então continuou correndo, desesperada. Não tinha a menor noção de onde estava, sentia como se estivesse correndo há dias. O frio intenso parecia congelar até os ossos. Então ela avistou uma luz ao longe e sentiu que ali encontraria paz e estaria finalmente a salvo. Como se a claridade lhe desse forças, ela intensificou a corrida, e, chegando mais perto, percebeu que a luminosidade vinha da janela aberta no segundo andar de uma casa. Depois da casa, havia somente escuridão.

Olhou para trás uma última vez. Não conseguia ver seu perseguidor, mas sentia que ele estava por perto, como um animal espreitando sua presa. Achava que tinha conseguido pelo menos uma vantagem razoável, e a casa estava cada vez mais perto. Deixou-se invadir por uma pontinha de esperança, talvez ela conseguisse se livrar, enfim.

Sorriu.

Poucos metros depois, entrou gritando por socorro na casa que a esperava de portas abertas. Só então ela percebeu onde estava, e viu que cada utensílio e cada bibelô estava em seu devido lugar. Deixou o corpo cansado cair no chão. Olhou em volta, tentando enxugar as lágrimas com as mãos trêmulas, já resignada. Sim, esse seria seu fim, ela sabia. Tudo em volta parecia sujo, cheio de manchas e sombras, então, condescendente, ela suspirou, se levantou e começou a limpar os vidros.



Nota: CasaVelha(NoMeioDoNada) foi publicado pela Giz Editorial em 2017 na
antologia "Fantásticas - Contos de Fantasia Protagonizados por Mulheres".




Dom Carlo


Apesar da estranheza do pedido, a família dela aceitou que ele ficasse com as cinzas. Ela fora a primeira a ser cremada, e só o foi por que ele garantiu que esta era a vontade dela: “ — Ela me disse, diversas vezes aliás, que tudo em seu corpo que não pudesse ser doado, deveria ser cremado. E eu garanti que faria cumprir sua vontade”.

Assim foi feito.

Ao ser constatada a morte cerebral, logo após o acidente, a irmã mais velha, na ausência dos pais já falecidos, assinou toda a documentação necessária, e foram doados rins, coração, córneas, pâncreas, etc. Todos sabiam que era isso que ela queria, mas a história da cremação foi uma surpresa. A família não teve trabalho algum neste sentido, ele fez questão de providenciar tudo. Ao final do processo, a família ficou até aliviada ao entregar as cinzas. Eles jamais admitiriam, mas ninguém queria ficar com a pequena urna onde estavam os restos mortais daquela que um dia fora a tão querida Rebeca.


❃ ❃ ❃

Agora, dois anos depois, ele estava levando a urna consigo. Ia para o interior em busca de novos ares e nova vida. Já tinha a casa preparada – comprada quase um ano antes – e um grande salão alugado no centro, onde abriria enfim o seu próprio negócio. Seu destino era a cidade de Garça, que apesar do constante desenvolvimento, não estava nem perto do tamanho e da confusão de São Paulo. Ele havia comprado uma bela casa, talvez grande demais pra morar sozinho, e passou alguns meses cuidando de cada detalhe da mobília e da decoração, dando especial atenção ao cômodo onde ele sabia que passaria a maior parte do seu tempo livre: um grande quarto que foi convertido numa aconchegante biblioteca.

Há muito tempo ele queria abrir um negócio, mas não sabia exatamente de que tipo. Pensou em abrir uma sorveteria, já que o clima da cidade era bem quente na maior parte do ano, mas bastou uma curta caminhada ao redor da Paróquia de São Pedro Apóstolo pra fazê-lo desistir da ideia. Já havia sorveterias demais. Depois de muito pensar e caminhar pelos arredores, ele resolveu: abriria uma pizzaria! Assim decidido, passou os últimos três meses preparando as coisas.

O salão tinha uma localização extremamente conveniente, ficava próximo de sua casa e bem na frente da paróquia, que era muito frequentada, não só pelos habitantes locais, como pelos moradores das cidades próximas. Seria perfeito! Ele estava agora chegando com suas poucas bagagens, após ter rompido os últimos laços com a sua antiga vida na capital, e não pode evitar uma pontada de orgulho ao passar na frente da pizzaria que abriria dali a dois dias. Parou o carro por instantes somente para observar o letreiro e a faixa que anunciava a inauguração agora tão próxima:

Imagem de faixa onde se lê: Pizzaria Dom Carlo, inauguração sexta feira 13 de outubro.

Nas duas últimas semanas, dividido entre São Paulo e Garça, ele foi fazendo os acertos finais no salão, e divulgando a pizzaria. Foram distribuídos panfletos na saída da igreja e havia cartazes espalhados por toda a cidade, estavam todos ansiosos pela inauguração.

Carlos havia contratado três pessoas para ajudá-lo, mas já nos primeiros minutos, percebeu que isso não seria suficiente. A pizzaria ficou lotada. Os funcionários, com a permissão do dono, chamaram amigos e familiares às pressas pra ajudar. Foram necessárias mais quatro pessoas, ninguém esperava tamanho sucesso.

O tempo passou e, aos poucos, as opções do cardápio aumentaram, assim como os funcionários e os clientes. No início, Carlos fazia as pizzas sozinho, mas logo teve que dividir esta tarefa entre dois de seus funcionários. Agora, só havia uma pizza que Carlos continuava fazendo, era a "especialidade da casa", composta de atum, catupiry, azeitonas e orégano, e ele fazia questão de prepará-la numa cozinha separada, longe das vistas dos clientes e mesmo dos funcionários, que até estranhavam, mas não questionavam o chefe.

Essa pizza tão secreta foi ficando cada vez mais famosa, e toda essa aura de mistério só fazia aumentar a curiosidade de todos, não eram raros os que diziam que aquela era a melhor pizza da casa. Muitos pediram para conhecer a cozinha onde era feita a deliciosa e misteriosa pizza e não encontraram nada de anormal. Sempre que questionavam qual era o segredo daquela pizza tão saborosa, ele respondia: “ — É o orégano. Ele é muito especial.” Clientes, concorrentes e funcionários tentavam reproduzir a pizza, mas ninguém nunca conseguiu, por mais que se tentasse, nunca ficava igual. Foram feitas ofertas em dinheiro para que ele revelasse o segredo, porém ele sempre dizia a mesma coisa: “ — Não há segredo algum além do orégano.” Certa vez, sua casa foi invadida, pois criou-se o mito de que ele escondia a receita em sua biblioteca, porém os cinco arruaceiros que arrombaram a casa, não encontraram nada além de livros comuns, havia alguns raros, é verdade, mas nada de especial, nada de receitas.

Meses e meses foram se passando, sempre com a pizzaria cheia, até que um dia Carlos simplesmente fechou sua cozinha e riscou do cardápio a pizza tão famosa, saiu mais cedo deixando a pizzaria a cargo dos funcionários, estava visivelmente abatido e disse que precisava descansar. Houve alguns protestos por parte dos clientes e dos funcionários, e ele respondeu tristemente: “ — Não posso mais fazer esta pizza. Meu orégano acabou.”

Ao chegar em casa, trancou-se na biblioteca, separou alguns livros e os levou para uma mesa junto à janela. Aqueles livros eram especiais pra ele. Eram especiais porque tinham sido presente dela. Ele precisava ver os livros, tocá-los, precisava sentir que ela ainda estava por perto de alguma forma. Ele se sentou, abraçou alguns daqueles livros e pensou com um sorriso que, mesmo ela estando morta há alguns anos, tinha conquistado uma cidade inteira. Uma cidade que jamais a conheceria, mas que a tinha devorado com gosto!



Nota: "Dom Carlo" foi publicado em 2014 no site Entre Contos sob o título de "Orégano".




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